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A ilusão do Eu.

"É preciso acreditar que somos do jeito que pensamos ser, afinal sempre foi assim que nos conhecemos. Que outra forma existe?"

                                                                              Armando Correa de Siqueira Neto*


Escrito por Bruno Franco 15 de agosto de 2018


É preciso acreditar que somos do jeito que pensamos ser, afinal sempre foi assim que nos conhecemos. Que outra forma existe? Quem disse que podemos ser outra coisa que não exatamente o que somos? É possível eu não ser como me imagino? Ou as pessoas são como são, e impossível seria ser diferente? Não nos reconheceríamos, não seríamos nós?

 

Mas é preciso desacreditar também...

 

Quem garante que o que pensamos e fazemos todo dia vêm somente do eu aparente, e não de outro pedaço dentro de nós, que sequer desconfiamos existir? Um lado que pode estar lá, de modo silencioso realizando automaticamente (lembre-se dos instintos) um punhado de coisas contra as quais já levantamos suspeita vez por outra, qual a persistente repetição de “erros” normalmente afetivos e emocionais que nos levam a esperar pela realização de uma dada fantasia que nunca se realiza, e que até já avaliamos tal impossibilidade à luz da razão. Sou eu mesmo a me lançar nesse jogo de resultado frustrante, cheio de raiva e de torturante tristeza? Se já sei que o caminho é falso, que razões me levam a me manter nele? E o que dizer de “escolhas” profissionais influenciadas profunda e imperceptivelmente pelos pais? Quantos comportamentos dos nossos pais (de novo!) repetimos alegando serem eles legitimamente nossos quando somos confrontados por um observador externo atento? Nós percebemos o fluxo no qual prosseguimos por forças alheias à nossa própria? E, no entanto, desviamos a nossa atenção, deixando pra lá os insolúveis mistérios. Por que não pensamos seriamente a respeito? Do que fugimos ao não entrar em contato mais profundamente conosco? Afinal, não estamos convencidos de que somos o que somos pelo que sempre percebemos a vida toda? Acaso tememos encontrar algo além do eu tão avidamente entendido como único? E se há mais de nós em nós mesmos, apenas com aparências e funcionalidades diferentes daquelas que conhecemos superficialmente?

 

O eu inconsciente?


 E se considerarmos outros aspectos na reflexão sobre se somos mais do que o eu que conhecemos em nós? Que tal a ideia de inconsciente, uma porção psicológica (amplamente estudada pelo fundador da Psicanálise, Freud) que tenta resolver as questões, sobretudo as emocionais, que a consciência não consegue lidar bem: certas decisões que de tão pesadas nos colocam contra a parede do medo, levando-nos a protelá-las, e de cuja resposta só Deus sabe quando a teremos. Há inconsciência acerca de alguns processos internos conforme é possível verificar adiante.

 

O organismo autônomo

 

E alguns funcionamentos orgânicos (respiração, digestão, ajustes hormonais, reprodução celular e seus reparo e revisão dos filamentos de ADN no início do processo denominado ‘Mitose’, defesa imunológica a micro-organismos invasores, etc) que nem prestamos atenção, e mesmo assim, nas adequadas condições, agem sem qualquer autorização consciente de nossa parte, apenas trabalham, quais desconhecidos dentro de alguém que se julga conhecido de si mesmo. Não é irônico?



 

Poderosas influências sociais

 

Mais: é possível levar em conta, ainda, as forças invisíveis sociais que nos arrastam aos mais pitorescos (por vezes perigosos, se apontarmos a estética que rouba ricos nutrientes em troca de empobrecidas silhuetas quase cadavéricas) comportamentos de ajuste, mesmo que muitos teimem em afirmar o contrário: Sou o que sou, e não sigo nenhum modismo, não sou escravo do que a sociedade diz! Entretanto, não somos reféns do já conhecido espetáculo social? E quanto aos carros? Não são mesmo um símbolo de poder divulgados pela mídia, e quem os dirige não se sente poderoso ao ponto de a autoestima elevar alguns números no ranking da aparência, qual proposto pelas propagandas (estas já observadas ao longo do tempo desde o começo do Século XX, através dos conceitos de Edward Bernays (1891-1995), sobre a irracionalidade e manipulação das pessoas)? Quem admite tal observação? Não! Compro carro para transporte somente, defende-se aquele que não precisaria se preocupar com defesa, haja vista achar que o seu eu não faz parte de uma suposta estrutura maior.

 

Os silenciosos conflitos e a psicopatologia

 

Ainda: como iluminar a obscura incompreensão que paira sobre certos males que assolam a população: depressão, pânico, obsessões e compulsões, anorexia, etc, sem considerar um lado imperceptível dentro de nós, capaz de criar tais doenças em razão de conflitos mal resolvidos (dentre outros fatores), provocando-nos a encontrar uma solução. Então, ainda que não enxerguemos, não é brilhante a natureza, dotando-nos de tal mecanismo que visa proteger (ao estimular os ajustes necessários), consequentemente, a informação genética que precisa ser salvaguardada e transmitida às gerações seguintes?

 

A força genética por trás dos bastidores

 

E os genes herdados, a propósito, não fazem parte de um lento e colossal processo evolutivo que gerou aperfeiçoamento adaptativo? Não somos influenciados por tantas e profundas informações de longa data (combinadas com o ambiente), a ponto de nos faltar o tal controle baseado no eu, que tanto afirmamos existir sem qualquer cerimônia? Por ventura os rompantes agressivos que saltam de dentro de nós ocasionalmente não fazem parte da nossa natureza animal (inclua-se a parte do cérebro primitivo existente), levando-nos a uma tentativa de maquiá-la com as mais absurdas justificativas? Não é a inveja tão odiada por nós quão persistente em aparecer em nossas próprias bocas quando afirmamos que certas pessoas são infelizes, burras, medrosas, levianas, feias, justamente quando os seus sucessos nos incomodam a ponto de nos voltarmos tanto para elas com empenhada crítica ferina? Cativar outrem e obter certo controle sobre a situação para atender a necessidades pessoais não é designado convenientemente como troca de favores ao invés de manipulação? Mas como reconhecer os fatos se vemos o que queremos ver apenas?

 

As relações amorosas de “livre” escolha

 

Considere: por que somos levados a escolher determinado tipo de companhia para as relações amorosas, alegando que somos livres para a seleção, se na verdade, com a devida análise, tendemos a nos “encaixar” conforme a semelhança de características essenciais dos pais, e, como aponta a pesquisadora estadunidense Laura Kipnis, do status social, nível de cultura e inteligência, além de cheiros atrativos sexualmente já identificados pela neurociência, perfil físico ideal para acasalamento e também para o cuidado da prole (ressalte-se a liberação de ocitocina, substância química que ajuda a estreitar o vínculo afetivo, além de reduzir a agressividade), ou seja, a predominância de fatores que sequer temos noção de existirem? Por falar em neurociência, já se comprovou que o cérebro responde a estímulos antes mesmo de termos a consciência da resposta, quer dizer então que algo foi recebido, processado e devolvido sem que tenhamos percebido. Onde se encontra o eu nessa hora?

 

Fazer sem saber e negar através do autoengano

 

E o que dizer do autoengano? A negação em perceber aquilo que grita aos sentidos, qual uma mãe que, inicialmente, não “enxerga” o vício do filho nas drogas, por exemplo, a fim de manter distante o mal-estar que lhe cutuca em cada situação reveladora: comportamentos diferentes, olhos vermelhos, alteração da rotina horária, sumiço de objetos em casa, etc. Mais: não estudar e esperar bom resultado na prova. Provocar sutilmente alguém por certo tempo e se espantar profundamente numa eventual ocasião em que tal pessoa age grosseiramente: o que eu fiz pra merecer isso? Estacionar em local proibido e se revoltar por receber uma multa. Comprar um objeto por um valor abaixo do mercado e se surpreender com a sua condenável qualidade. Achar que o copo a mais de bebida alcoólica não fará mal e maldizer a vida pelo “acidente” de trânsito ou os “inesperados” enjoos e dores de cabeça.

 

Egoísmo maquiado de altruísmo

 

E quantos comportamentos altruístas, se verificados rigorosamente com toda a honestidade, almejam, no fundo, atender a desejos puramente egoístas, conforme muito se percebe nos típicos atos de doação. (Note-se que a própria pessoa revela tal objetivo ao alegar que se sente leve, pra cima, quer seja, seu próprio ganho, mas “vê” apenas o altruísmo presente em si, e nada mais.) E mesmo em outros tantos atos de altruísmo é possível expor, se retirado o véu da cegueira, a tentativa de redimir certas culpas que sequer são percebidas sem a devida luz da consciência.

 

A linguagem primitiva universal

 

Ao que tudo indica, existe em nós uma complexa estrutura psíquica, que o tempo todo, ao longo da vida, comunica imensa quantidade de informações, as quais mesmo sem a nossa consciência, articulam os rumos de incontáveis comportamentos e decisões que tomamos, haja vista ser necessário, até o momento pelo menos, contarmos com ajuda tão preciosa. Mas como é possível definir tal parte inconsciente que tanto usa de linguagem quase imperceptível para nos guiar vida afora? Quando refletimos a respeito da linguagem cotidiana (coisa rara de ser pensada, pois dificilmente nos voltamos para os processos internos a fim de lhes conhecer ou tomar ciência de sua presença), alcançamos, via de regra, tão somente as limitadas palavras que compõem o peculiar vocabulário da nossa cultura (o que o eu alcança), que, por semelhança a outras culturas encontra nas outras línguas, correspondentes vocábulos, senão próximos em seu significado, desconsiderando, por outro lado, a linguagem inconsciente universal e primitiva, mormente captada através de escuta treinada psicanalítica -- poder-se-ia afirmar que falamos duas línguas simultaneamente, uma consciente e outra inconsciente. E, embora seja possível perceber tal linguagem inconsciente se manifestar por meio de simbologia claramente identificável no discurso do interlocutor, e ser possível alçar-lhe compreensão por via da interpretação, não reconhecemos a sua mais profunda universalidade, aquela que deu ao homem nos tempos primevos, a capacidade de comunicar (a língua mãe comum a todos), desde as impressões corporais (o corpo sempre falou) até as pinturas rupestres, passando, posteriormente, à linguagem específica dos grupos sociais que a criaram, e à escrita, nos moldes que a caracterizam através dos registros. Não é o inconsciente por ventura o agente que fala desde há muitíssimo tempo por meio dos símbolos, tornando-os a linguagem primitiva universal (percebida inclusive nas pinturas e esculturas pré-históricas, além da imensa possibilidade de expressão artística musical potencialmente existente nos respectivos instrumentos arqueológicos também encontrados em vários sítios de estudo), e a partir de tal estrutura de comunicação nasce cada uma das línguas com as quais tomamos contato até a contemporaneidade? O eu sabe disso?

 

Questões gerais sobre a ilusão do eu

 

Como negar em si mesmo tais aspectos, passando por cima de um monte de evidências que apontam para uma única situação: não somos exatamente o que cremos ser? Não é verdade que quanto menos nos conhecemos, mais frágeis ficamos diante de tantas situações que requerem de nós escolhas mais conscientes e maduras? E o que há de tão surpreendente em reconhecer dentro de si um complexo sistema até então desconhecido que tanto trabalha (do jeito que pode por hora) em prol da adaptação e da sobrevivência? O eu, pois, é uma ilusão, respeitada a condição de ignorarmos os seus outros aspectos? A ilusão do eu perde terreno à medida que decidimos entender quão desconhecidos somos de nós mesmos, e nos lançamos a um mergulho interior com a finalidade de se apropriar daquilo que é de direito a todo ser que pensa: a consciência sobre a inconsciência que nos atrasa consideravelmente a jornada do desenvolvimento.

 

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